quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

INTRODUÇÃO À DEFESA DA AMAZÔNIA


O Fantasma da internacionalização da Amazônia Brasileira
Geraldo Lesbat Cavagnari Filho
www.unicamp.br
O início da presença militar na Amazônia coincide com a sua conquista, em 1616, quando foi erguido o Forte do Presépio, que deu origem a Belém do Pará. Mas a primeira colônia militar só viria a se estabelecer em 1840, na região do rio Araguari — seguindo-se a instalação de outra em São João do Araguaia, São Pedro de Alcântara, Óbidos, Oiapoque e Tabatinga. Na perspectiva da construção do território brasileiro, a Amazônia era tão importante quanto a Prata, já que o Império enfrentava as ambições francesas e britânicas de acesso ao vale amazônico, assim como as pressões dos Estados Unidos para o estabelecimento da livre navegação internacional dos rios amazônicos — que seria efetivada em 1866[1]. Os contenciosos com a França (Questão do Amapá) e Grã-Bretanha (Questão do Pirara) só viriam a ser resolvidos no início da República. No entanto, o aprofundamento da defesa da Amazônia só seria iniciado no século seguinte, quando aquelas colônias foram substituídas por pelotões de fronteira. Se bem que, aprofundamento lento e intermitente.
Às Forças Armadas coube a iniciativa da articulação da Amazônia com as áreas mais avançadas da economia brasileira, com o propósito de defendê-la da cobiça internacional — porque já estavam presentes, segundo o discurso militar, as ameaças de sua internacionalização. Na década seguinte, na década de 80, com a introdução dos direitos humanos e do meio ambiente na agenda internacional, pareceu aos militares que o futuro da Amazônia estava novamente ameaçado, agora agravado pela intenção (mais aparente que real) das grandes potências de legitimar o “direito de ingerência”. Ou seja: legitimar um pretenso “direito” auto-outorgado por elas, para ser exercido conforme seus próprios interesses e os ditames do realismo político[2]. Assim, em face de ameaça de tal magnitude, alguns setores militares foram induzidos a reintroduzir a “teoria da conspiração” no discurso de defesa da Amazônia.
Grande parte das acusações contra o Brasil estava apoiada em provas inconsistentes — havia exageros nas denúncias. Mesmo assim, qualquer ameaça que se insinuasse já seria motivo para justificar o fortalecimento do dispositivo militar na região. A ampliação e o fortalecimento da presença militar na Amazônia foram determinados, de certo modo, segundo a lógica que enfatizava a “hipótese da conquista” do espaço amazônico pelas grandes potências — o que implicaria, obviamente, ocupação efetiva do território. Essa “hipótese” teve algum relevo quando os Estados Unidos realizavam exercícios militares na Guiana, como se eles fossem o prelúdio da aplicação da “teoria do cerco” — do “cerco” da Amazônia brasileira. Em face da possibilidade de configuração de tal “hipótese”, impunha-se então às Forças Armadas empregar a “estratégia da resistência” — que visaria, em tese, negar ou dificultar a ocupação do território amazônico pelo “invasor”, de modo que o levasse a repensar a continuidade da guerra, dado o pressuposto de que é possível resistir a uma ação militar na Amazônia.
O teatro de operações amazônico não se presta ao emprego centralizado de grandes unidades, de grandes efetivos. As operações realizadas são descentralizadas, a unidade tática de emprego é de pequeno efetivo. Nele não se configuram linhas de contato, e o controle do território é o controle de núcleos populacionais e de suas vias de acesso. A articulação das forças em terra ou é pelos rios ou é pelo ar, o que restringe a logística de grandes unidades. O teatro amazônico é, não há dúvida, o espaço adequado para uma guerra prolongada. Considerando as características inóspitas do terreno, que criam óbices consideráveis à logística, a dimensão continental de tal teatro e as condições climáticas e sanitárias desfavoráveis, uma intervenção militar na Amazônia demandaria uma mobilização de recursos de tal magnitude que uma grande potência não teria a certeza se alcançaria resultados compensadores — aliás, só a admitiria se estivesse em jogo algum interesse considerado vital[3]. Ou seja: se essa grande potência estivesse disposta a enfrentar uma guerra prolongada. Até agora, não apareceu nenhuma disposta a enfrentá-la.
Entre as grandes potências somente os Estados Unidos têm a capacidade para realizar unilateralmente uma intervenção militar, seguida de ocupação, na Amazônia. Mas uma ação militar só terá sentido se algum interesse vital deles for violado, ou mesmo se estiver ameaçado, induzindo o apoio da opinião pública norte-americana à sua defesa. Depois da Guerra do Vietnã, qualquer envolvimento militar numa guerra prolongada só se justifica com esse apoio — porque ele pressupõe a defesa de algum interesse vital. Se a opinião pública norte-americana se convencer de que algum interesse de tal natureza poderá ser afetado — por exemplo, pela devastação do meio ambiente amazônico —, não há dúvida de que os EUA intervirão militarmente na região, mesmo correndo o risco de se envolver numa guerra prolongada[4]. Todavia, tudo indica que essa devastação não deverá se apresentar como fato consumado num futuro não muito distante. Aliás, os Estados Unidos poderão empregar outros meios para pressionar o Brasil, mais eficazes e que lhes oferecem menos riscos — porque, se empregados, eliminarão a possibilidade de configuração da “hipótese da intervenção militar”. Uma intervenção militar na Amazônia não é uma possibilidade real, é apenas uma possibilidade teórica que deve, no entanto, ser considerada no planejamento estratégico-militar — bem como a estratégia da resistência.
Convém esclarecer que desde a década de 70 o governo brasileiro já estava empenhado em encontrar uma solução para o problema de segurança da Amazônia, mas uma solução fundada na cooperação com os demais países amazônicos. Com o Tratado de Cooperação Amazônica, em vigor desde o início da década de 80, ele visou à integração física e ao desenvolvimento da Amazônia continental. Com essa iniciativa pretendia afastar qualquer tentativa de controle internacional sobre a região. Regionalizando a solução daquele problema os países signatários (Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela) estariam resguardando sua capacidade de decisão na Amazônia continental. Solução que garantiria, não há dúvida, segurança pela cooperação, sem o recurso aos meios militares — se o Pacto produzisse resultados concretos no marco dessa cooperação. Explica-se porque ele não foi bem-sucedido: o rápido desenvolvimento do Brasil na Amazônia fez ressurgir entre os vizinhos amazônicos o fantasma do expansionismo brasileiro.
O Projeto Calha Norte surgiu, em 1985, como reação unilateral ao imobilismo deliberado dos demais signatários em executar o Tratado de Cooperação Amazônica. Foi elaborado como plano de ação governamental com a finalidade de intensificar a presença do Estado ao norte dos rios Solimões e Amazonas, abrangendo uma área praticamente inexplorada, que corresponde a 14% do território nacional, com mais de 6,7 mil quilômetros de fronteiras terrestres — que se estendem de Tabatinga à foz do Oiapoque. Pelo planejamento original, ele deveria estar concluído até o final de 1997, mas a partir do governo Collor ele foi sendo esvaziado — isto é, sabotado — pelos governos que se sucederam até o atual, governo Fernando Henrique Cardoso. Desde o início, só os então ministérios militares realizaram a sua parte — se não a concluíram, foi por falta de recursos. O empenho desses ministérios — e, em parte, por ter sido uma iniciativa da extinta Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional — serviu de pretexto para a denúncia de pretensa militarização do Calha Norte. Até recentemente, consideravam-no um “projeto de guerra” falido. Porém, fatos recentes demonstram a importância dele para a segurança e defesa da Amazônia.                                                                                                  
A partir de 1986, recursos militares foram empregados na criação de novas organizações militares e na ampliação de outras já existentes. É claro que as já instaladas — com exceção das brigadas de infantaria de selva e seus batalhões e dos fuzileiros navais — não são aptas a combates prolongados, mas apenas às atividades de vigilância e controle das fronteiras. Por enquanto, as organizações militares aptas a esses combates não possuem ainda um nível de prontidão e operacionalidade que atenda a uma necessidade de defesa imediata. Se esse nível for alcançado, o dispositivo militar atual poderá ter uma capacidade de pronta resposta (oportuna e eficaz) na defesa da Amazônia. A preocupação com a defesa stricto sensu dessa região não se reduz ao atendimento das necessidades na fronteira Norte do País, não se limita a Calha Norte. Ou seja: se a preocupação é com toda a Amazônia brasileira, para sua defesa deverão concorrer necessariamente elementos de combate dotados de mobilidade tática e eficientes apoios logísticos e aéreos.
Para a defesa nacional, segundo estimativas divulgadas, o Brasil deverá gastar cerca de US$ 10 bilhões para modernizar suas Forças Armadas no período de uma década, até 2010. Além desses recursos, deverão ser destinados US$ 1,2 bilhão para iniciar e concluir a parte civil e concluir a parte militar do Calha Norte, e US$ 1,4 bilhão para pagar o Sistema de Vigilância da Amazônia, Sivam, cuja conclusão está prevista para julho de 2002 — com atraso de dois anos. Atualmente, o dispositivo militar na Amazônia abrange 25.000 combatentes, sendo o maior efetivo o do Exército — cerca de 23.000. Deverão integrar-se a esse dispositivo, num prazo inferior a dois anos, 99 aviões turboélice ALX de ataque leve, que atuarão de forma conjunta com cinco sofisticados jatos EMB-145 — na versão de alerta avançado e vigilância eletrônica — e três, também EMB-145, de sensoriamento remoto. Além dessas aeronaves, farão parte do Sivam: 70 estações meteorológicas terrestres, 13 estações meteorológicas de altitude, seis radares transportáveis, 14 radares fixos, 10 sensores de transmissão clandestina e quatro estações de recepção de satélites meteorológicos. Para completar essa estrutura, aguarda-se a regulamentação da Lei do Abate — instrumento imprescindível à defesa do espaço aéreo amazônico.
Todavia, tais gastos não são credencial de um governo exemplar com a defesa nacional. Ao contrário. Foi a iniciativa conjunta dos Estados Unidos e da Colômbia de regionalizar a guerra civil colombiana que despertou no governo brasileiro maior interesse com a segurança e a defesa militar da Amazônia. Os Estados Unidos e a Colômbia tentaram usar o Plano Colômbia como um primeiro exercício concreto de cooperação regional diante de uma ameaça comum, o narcotráfico — e não, aparentemente, a guerrilha de esquerda. Essa tentativa, porém, foi rechaçada na IV Conferência de Ministros de Defesa das Américas realizada em Manaus. O Plano foi elaborado sem levar em consideração a opinião dos países vizinhos que terão de lidar com as conseqüências de uma escalada do conflito na Colômbia. A ameaça comum, não há dúvida, é o narcotráfico e não as forças insurgentes. Mas qualquer intervenção realizada por países da região na Colômbia resultará em envolvimento em todas as frentes da guerra civil — na frente do narcotráfico, assim como na frente das forças insurgentes.
O conflito colombiano já se estende por quatro décadas. Até há pouco tempo, era manejável pelo governo: a guerrilha de esquerda, em nenhum momento, durante a Guerra Fria, chegou a ameaçar a estabilidade do país. Na última década, na década de 90, quando ela e os paramilitares de direita passaram a ser financiados pelo narcotráfico, a situação escapou ao controle desse governo. Com esse apoio financeiro regular e substancioso, tais forças insurgentes — Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, Farc, Exército de Libertação Nacional, ELN,  e Autodefesas Unidas da Colômbia (confederação de exércitos privados formados pelos paramilitares de direita), AUC — assumiram um protagonismo significativo na política colombiana, apresentaram-se como alternativa de poder. Obviamente, indesejável tanto para o governo — e, por extensão, para a oligarquia colombiana — quanto para os Estados Unidos. O Plano Colômbia poderá reduzir significativamente a produção colombiana, mas não reduzirá a produção global de drogas. Se a demanda persistir no mercado americano, ela será atendida por outras fontes produtoras. Na realidade, conscientes de que os resultados obtidos na frente do narcotráfico não influirão no consumo norte-americano, os EUA estão determinados a eliminar as forças insurgentes como alternativa de poder no conturbado processo político colombiano. Ou melhor, estão determinados a eliminar a guerrilha de esquerda como alternativa de poder.
É claro que na ótica de Washington a ameaça principal à segurança regional não reside nem no narcotráfico nem nos paramilitares de direita, mas no precedente perigoso que poderá representar uma guerrilha de esquerda bem-sucedida na América do Sul. Daí a determinação dos Estados Unidos em demonstrar à opinião pública mundial que as forças de guerrilha — tanto as Farc quanto o ELN — “estão se afastando cada vez mais de sua origem política para envolver-se plenamente no mercado de drogas ilícitas”.[5] Ou seja, elas em si já se constituem em cartel de drogas. Segundo essa visão, estão desqualificadas para participar do poder político colombiano. Mas, na ótica dos países amazônicos, no conflito colombiano impõe-se a solução negociada. Solução que exige, por sua vez, a qualificação da guerrilha de esquerda como alternativa de poder, apesar de os EUA buscarem o oposto. Desqualificados devem ser considerados os paramilitares de direita — que, na realidade, constituem uma organização tão criminosa quanto os cartéis da droga.
Por enquanto, não há ameaças à Amazônia que exijam resposta militar. Nem mesmo o conflito colombiano representa ameaça dessa natureza. Ou seja: nem a transferência das unidades de transformação da coca e da papoula, respectivamente, em cocaína e heroína, nem a fixação da guerrilha de esquerda em “santuários” na Amazônia brasileira atentarão contra a soberania nacional ou contra a integridade do território brasileiro. Aliás, nada indica que num futuro imediato ameaças de natureza militar venham a se apresentar no cenário amazônico. Mas, de qualquer modo, o Brasil deve investir na busca da capacidade de pronta resposta de suas forças singulares presentes na região amazônica. No entanto, nada obriga que em termos de defesa stricto sensu, em termos de defesa militar, deva ser atribuída prioridade maior à Amazônia que ao Atlântico Sul e à região que concentra efetivamente o poder e a riqueza do País. Aliás, a essa região e ao Atlântico Sul é que deve ser atribuída a mais alta prioridade de defesa. Nem a “teoria da conspiração” nem o seu corolário, a “teoria do cerco”, são referenciais recomendáveis ao planejamento estratégico-militar.

NOTAS
 1 Demétrio Magnoli, O corpo da Pátria: imaginação geográfica e política externa do Brasil, São Paulo, Editora da Unesp – Editora Moderna, 1997, pp. 175 a 184.
2 Luiz A. P. Souto Maior, “O dever de ingerência”, in Carta Internacional, Funag-USP, ano VIII, nº 86, abril de 2000, p.2.
3 José Luiz Machado e Costa, “Balanço estratégico na América do Sul e o papel do Brasil na construção de uma visão sul-americana de defesa: condicionantes, singularidades e parâmetros”, in Política Externa, São Paulo, Paz e Terra – USP, 7(4), mar-abr-mai 1999, pp. 74-75.
4  Esta hipótese apresentei originalmente durante o debate do tema “Amazônia no contexto internacional”, no V Encontro Nacional dos Estudantes de Relações Internacionais, realizado, em 29 de abril de 2000, no Auditório Simon Bolívar do Memorial da América Latina.
5 O Estado de São Paulo, edição de 12 de março de 2001.
 
* Artigo originalmente publicado em Carta Internacional, Funag-USP, ano X, nº 107/108, janeiro/fevereiro de 2002, pp.19-21.
**  Fundador e coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp e professor convidado do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP.

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