terça-feira, 22 de novembro de 2016

Brasil precisa de uma Crítica da Aceleração Cínica

O cinismo no Brasil virou um atropelo. Uma disparada. Uma manada de cínicos tomou o Planalto, referendada por cínicos de toga e por multidões de cínicos políticos
Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)

O filósofo alemão Peter Sloterdijk escreveu sua “Critica da Razão Cínica” em 1983. Mais de 30 anos depois, podemos usar o mote para pensar na extensão do cinismo em terras brasileiras, nestes tempos recentes. A ética das conveniências – uma ética às avessas, portanto – tem sido invocada por atores políticos de diversos matizes. Particularmente pelos que pretendem preservar o estado atual das coisas. Como os cínicos descritos pelo alemão.
Não falo dos cínicos originais, claro. Como o grego Diógenes, aquele da Lanterna. Assim como outros termos (“prudência”, por exemplo), a palavra cinismo foi ganhando, ao longo dos séculos, um contorno oposto. De uma postura libertária, provocativa, contestadora, iconoclasta, foi aos poucos se tornando isso o que está aí – uma palavra em sintonia com as práticas cotidianas da burguesia. Ligada a um fingimento – mas um fingimento conservador, quase violento. 
Sloterdijk fala de cinismo na imprensa, na universidade, na religião. Até no sexo. Fala de cinismos. E, claro, fala de cinismo na política. Seria desnecessário enumerar todos os casos recentes na história do Brasil. Estão bem à vista. Basta olhar para a TV e vislumbrar a face do ministro Geddel Vieira Lima. Ou relembrar os momentos pouco grandiosos da entrevista do presidente Michel Temer a vendedores de secos e molhados no Roda Viva, da TV Cultura, na última segunda-feira.
O que estou questionando aqui é a súbita aceleração. O cinismo no Brasil virou um atropelo. Uma disparada. Uma manada de cínicos tomou o Planalto, referendada por cínicos de toga (cínicos clássicos, cheios de mesura), e por multidões de cínicos políticos, antes incomodadíssimos com a corrupção-do-PT e agora um tanto distraídos em relação a acusações que envolvam o presidente-poeta, seus ministros ou tucanos de altas plumas.
Lembram-se daquele cinismo do futebol? Aquele cinismo quase saudável, que a gente exercita quando defende somente o nosso time, maldiz as decisões estapafúrdias apenas do juiz que nos prejudicou? Pois bem, agora vivemos um estado de 90 minutos vezes 90 minutos de cinismo: o cronômetro simplesmente não parou, e aqueles músculos nos cantos da boca ficaram meio que congelados. Com isso passamos a defender – nas redes sociais e nas ruas – posições que sabíamos ser indefensáveis.
Por cinismo explícito. Por ampla gama de falta de informações. Por ingenuidade ou por oportunismo, tudo junto. Mas no máximo a partir de um caleidoscópio ambulante que corre a partir de pernas cínicas. As pessoas que comemoram a saída de médicos cubanos talvez se refiram de modo condoído à morte de brasileiros pobres nos rincões do país. E talvez sejam as mesmas que acham graça na cena de um ex-governador sendo preso em pleno hospital, em plena maca.
Esse caleidoscópio cínico move-se rapidamente a partir de um simulacro de verde-e-amarelo rumo a uma imensa mancha preta – mas preta de fascismo. Misto de entropia e buraco negro. A luz no fim do túnel apenas ofusca – ou serve de flash para nosso exercício diário de disparar sorrisos (em meio a selfies paralisantes) enquanto os esboços de coesão social se esfacelam. O pacto coletivo possível simplesmente se esboroa. A crise está à vista. Sim, ela é econômica. E é política. E é cínica. Não olhem agora, mas ela já nos engoliu.

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