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Delações
da Odebrech desmentem a hipótese central da Lava Jato e expõem corrupção
incrustada no sistema político. Mas quem poderá transformá-lo?
Bastou que vazassem as primeiras, das 77 delações já combinadas por
executivos da Construtora Norberto Odebrecht, para que emergisse a imagem real
do sistema político brasileiro. Um punhado de grandes empresas financia
centenas de governantes e parlamentares, exigindo em contrapartida obediência a
seus interesses. Ao fazê-lo, as corporações dominam a agenda e as votações do
Congresso, que se torna impermeável à mudança e à vontade popular. Trata-se, nas palavras de Cláudio Melo Filho, ex-diretor da
empreiteira, de “típica situação de privatização indevida de agentes políticos
em favor de interesses empresariais”.
Estão envolvidos os “cardeais” da Câmara e Senado – em especial os que
impuseram há meses um governo não-eleito, em nome do “combate à corrupção”. A
lista começa com Michel Temer, citado 43 vezes por Melo sempre em
situações em que pede dinheiro ou oferece favores. As relações de quadrilha são
tão claras que os participantes do esquema têm codinomes, às vezes divertidos.
Romero Jucá, ex-ministro e líder do governo no Senado, é o “Caju”. O presidente
do Senado, Renan Calheiros, é tratado, no submundo, por “Justiça”. Eduardo
Cunha, ex-presidente da outra casa legislativa e peça-chave do impeachment,
atende por “Caranguejo”. O PSDB não fica imune. Aécio Neves é o “Mineirinho”;
Geraldo Alckmin, o “Santo”. De José Serra, que teria recebido 23 milhões de dólares, diretamente em
conta na Suíça, ainda não se sabe a alcunha – embora imagine-se… Outros
políticos, de menor coturno, figuram como “Velhinho”, “Muito Feio”, “Ferrovia”,
“Menor”, “Laquê”, “Miúdo”, “Sogra”, “Tique Nervoso”, “Decrépito”, “Moleza”,
“Boca Mole”. Mas a leitura do depoimentovale, muito além da picardia das alcunhas, pelo que
ensina sobre o declínio e decrepitude das instituições “democráticas”.
Há um paradoxo no cenário criado pelas delações – e ele diz respeito
diretamente ao que chamamos de esquerda. Por um lado, desaba a principal hipótese sustentada, ao longo de dois
anos, pelos conservadores. Ao contrário do que a Operação Lava Jato, os jornais
e TVs afirmaram incessantemente, a corrupção do Estado brasileiro não foi
inaugurada pelo PT; Lula, Dilma e José Dirceu não são os “chefes da quadrilha”.
Os esquemas de compra de mandatos estão enraizados na cultura política
brasileira; o petismo adaptou-se a eles, ao chegar ao poder. O escancaramento
deste fato, para as maiorias que têm acesso às notícias políticas por meio do Jornal Nacional, é de enorme importância. De agora em
diante, será quase impossível prosseguir na operação política que implicava
punir um bode expiatório – a esquerda institucional – para manter o sistema
intacto.
No entanto, nada indica que a esquerda institucional aproveitará a
oportunidade para exigir a mudança do sistema. Seu silêncio em relação às
delações da Odebrecht, quase uma semana após a revelação, é eloquente. Ela
mergulhou tanto nas dinâmicas, regras e na própria ética vigentes que escapar é
tão improvável como o êxito de alguém empenhado em erguer-se do solo puxando
seus próprios cabelos. Além disso ela, também implicada nas denúncias que já
surgiram e continuarão a se multiplicar, torce por uma espécie de anistia
recíproca – e talvez trabalhe por isso…
Enquanto persistir, esta inação deixará aberto um vácuo imenso e
perigoso. Toda a experiência dos últimos dois anos mostra que a crise de
legitimidade das instituições pode ser resolvida de múltiplas maneiras –
inclusive as mais regressivas. Foi por capturar o sentimento antiestablishment
– esta onda que percorre o mundo, cada vez mais avassaladora – que os
conservadores destroçaram, em poucos meses, anos de popularidade do petismo.
Agora, a hipótese de “golpe dentro do golpe” não deve ser descartada, em
especial quando se vê o papel muito ativo que a Rede Globo continua a
desempenhar na conjuntura. A possível mobilização pelas “diretas já” é um antídoto
apenas parcial. Ela permite questionar o governo Temer e denunciar a hipótese
de uma eleição indireta; mas não resolve o essencial. Ainda que se conquistem
eleições, o presidente eleito, qualquer que seja, continuará “governando” um
sistema colonizado pelo capital?
A proposta de uma reforma política radical é a alternativa óbvia. Ela
permitirá dialogar diretamente com o descrédito e o desencanto de muitos, em
face de uma democracia esvaziada e submissa. Os movimentos sociais a defendem
há muito. Em 2013, ela foi um dos focos das grandes mobilizações de junho. Em
2014, um plebiscito nacional sobre o tema, convocado de forma autônoma, mobilizou 7,7 milhões de pessoas e
reacendeu a chama. Mas ela foi sufocada em seguida, pela opressão silenciosa da
inércia.
Talvez falte à proposta sustentada pelos movimentos sociais um toque de radicalidade. Ela prende-se muito a uma tentativa de
aperfeiçoar a representação, esquecendo-se de dialogar com dois sentimentos que
podem ser potentes: o desencanto e a raiva, diante do que os espanhóis chamam
de “casta política”.
Uma reforma não será verdadeira se não for, também, plebeia. Ao invés de aprimorar a representação, é preciso submetê-la aos representados.
Isso implica eliminar privilégios, poderes e sigilos de deputados e senadores,
num choque de realidade com pitadas de jacobinismo. Os vencimentos de um
deputado ou senador não podem ultrapassar dez salários mínimos. Os subsídios
para educação privada dos filhos, moradia e planos de saúde extra-SUS devem ser
extintos. A aposentadoria, equiparada à de um servidor público comum. A
reeleição de parlamentares, limitada a uma. Uma proposta de mudança profunda no
sistema político deve ver a representação como um serviço temporário à
sociedade, nunca como uma profissão.
Os interessados em representar a vontade política do povo precisam estar
dispostos a submeter-se a mecanismos transparentes de controle social. A que
sessões, do plenário e das comissões de trabalho, compareceram, a cada dia?
Como votaram? Que projetos propuseram? Quem receberam, em seus gabinetes?
Responder a estas questões será sempre, para alguém interessado em aprofundar a
democracia, um exercício prazeroso de diálogo com os eleitores. Se nada
semelhante a isso foi adotado até hoje, apesar dos meios oferecidos numa
sociedade informatizada, é porque a representação passou a ser vista
progressivamente como um poder sobre a sociedade, não como algo oferecido a esta por quem desenvolveu certas
aptidões.
Estabelecer a revinculação dos representantes aos representados é um
primeiro passo. Mas deve ser acompanhado de outros, que abram caminho para
novas formas de democracia, hoje embrionárias: a diretae a participativa. Em relação à democracia direta, há pelo menos duas propostas óbvias. Primeira: submeter qualquer emenda constitucional a um referendo. Essa
necessidade é ainda mais evidente agora, quando um Congresso com centenas de
parlamentares envolvidos na lista da Odebrecht não se envergonha de avançar
sobre os direitos da maioria. Segunda: multiplicar as consultas plebiscitárias à população. Realizá-las
tornou-se banal, do pondo de vista técnico. Politicamente, será um exercício
notável de construção, pelas maiorias, de novas formas de democracia.
Além das decisões plebiscitárias, é possível avançar em práticas que vão
muito além do binarismo entre sim e não. Os orçamentos públicos são um foco especial. Faça uma experiência.
Arrole, por exemplo, com uso dos bancos de dados, todas as obras propostas
pelos orçamento da União, do Estado e do Município para um determinado bairro.
Coloque-as num mapa, por georreferenciamento. Convide a população deste bairro
a visualizar o que os políticos – e certamente as empreiteiras – propõem para a
região. E pergunte a esta mesma população quais seriam as reais necessidades do
bairro.
Parecem utopias? Vivemos tempos dramáticos. A crise civilizatória em que
mergulhamos não poderá ser resolvida retornando aos “tempos dourados” do pós-II
Guerra, ao velho Estado de Bem-Estar Social, aos parlamentos em que políticos
com formação intelectual sólida debatiam ideias. A escolha está, provavelmente,
em outro patamar: ou nova democracia; ou retrocessos que nos rebaixarão de
derrota em derrota, numa espécie de 2016 prolongado.
Nesta espiral percorrida sob anestesia, o caso Odebrecht oferece uma
oportunidade rara de despertar, refletir e pensar a reconstrução. Seremos
capazes?
http://outraspalavras.net/brasil/diante-da-crise-uma-reforma-politica-radical/
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